sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Senhas

Postado por Elisandro Borges


Ouvi dizer que ela não gosta do bom gosto, nem do bom senso. Não mencione os bons modos, porque ela não gosta. Agüenta até rigores e não tem pena dos traídos, enquanto hospeda infratores e banidos. Respeita conveniências, não liga pra conchavos, suporta aparências e não gosta de maus tratos. Agüenta até os modernos e seus segundos cadernos, os caretas e suas verdades perfeitas. Agüenta os estetas, não julga competência e não liga pra etiqueta. Aplaude rebeldias, respeita tiranias e compreende piedades. Não condena mentiras nem vaidades. De tudo ela gosta um pouco. Gosta mesmo é dos que têm fome, dos que morrem de vontade, dos que secam de desejo e dos que ardem.

Ouça em alto e bom som: Adriana Calcanhoto - Senhas

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domingo, fevereiro 13, 2005

Câmara de tortura itinerante

Postado por Elisandro Borges


Ônibus de viagem lotado e as duas únicas poltronas disponíveis eram de frente à porta do banheiro. Não sabíamos que estávamos prestes a passar por um dos mais rigorosos testes de resistência humana que alguém poderia sequer ter sido submetido. Passados alguns minutos, um senhor futum decide pairar em férias sobre a atmosfera interior daquele caixote que nos envolvia em uma sórdida e sufocante experiência.

Se pegássemos no sono, era pesadelo atrás de pesadelo, como que numa angustiante tentativa do cérebro em nos acordar para uma vida melhor. Era em vão o eforço. Acordar não seria uma das mais acertadas opções, pois a realidade do ambiente solapava o único quinhão de oufato que ainda restara de nossos sentidos. Comecei a pensar em Deus nesse momento tortuoso. Comecei a acreditar que tudo era possível e lembrei que cada minuto representava uma oportunidade de mudanças. Contei... Contei... Contei cada minuto e me perdi em meio a tantas horas.

Para a salvação da lavoura, o ônibus pára em uma das estações e algo acontece. Àquela altura, nós estávamos semi-desmaiados e não foi possível destrinchar os detalhes do meio termo que nos devolveu a vida em requintes de ares novos. Passado o sufoco de 20 horas, estávamos livres daquela câmara de tortura itinerante. Pronto. Foi isso. Chega.

Ouça em alto e bom som: Qualquer barulho louco de Stomp!

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quinta-feira, fevereiro 03, 2005

Vintages

Postado por Elisandro Borges


Vamos ganhar língua solta dessa vez. Não exija sentido na estranheza desses traços, pois há de convir que às vezes são tortos e não dizem lá tantas coisas. Já pediram pra escrever sobre amizade por aí, mas vem cá, esse pedido descansa há décadas em arquivos esquecidos. E olha só a barba por fazer, ela esfrega o tempo em nossas caras fatigadas, na vontade muda de nos dizer que já não somos mais crianças. E os amigos? Eles estão em seus cantos, moram aqui dentro também. Uns passam, outros ficam... Quanto tempo faz que não nos econtramos, hein?

É assim mesmo. Correria, responsabilidade por todos os poros. Planos certeiros, desencontros. Sorte à vista. Lançaram os nossos amigos janela afora nesse mundo incerto. São tantas janelas, passagens em metáforas que mal pescamos - e um vacilo pode sublimar tudo em um segundo. Errar, correr, falar de boca cheia... Ser feliz por pouca coisa. E olha que não recuso copo de requeijão, eles me lembram bons tempos lá em casa. Quero brindar em copo de requeijão quando eu assim chegar. Copos com rótulos baratos também servem vintages de Dom Perignon. Quero um brinde aos nossos dias. Um brinde às seletas safras de bons amigos que não se separam. Tim-tim.

Ouça em alto e bom som: Portishead - Roads

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quarta-feira, fevereiro 02, 2005

A propósito, o propósito

Postado por Elisandro Borges


Ela se agarra como louca no começo, mas dez minutos é a tolerância máxima. E então, os dois querendo dormir, viram-se de costas um para o outro no ato individual de cair no sono. Quando acorda, o beijo selado e discreto evita de engolir a seco o gosto amanhecido. Tem coisas que nem a cumplicidade de velhos amores é capaz de suportar. O bafo matutino é teleguiado, impiedoso e surpreende inexplicavelmente até mesmo as mais congestionadas narinas. Não há ataque de rinite que impeça tamanho estrago.

Talvez ainda não tenhamos aprendido a amar com o nariz em horas desfavoráveis. Odores, cheiros... Gostos também entram em questão. Não sei se isso seria mais agravante que um sonoro ronco ao pé do ouvido. Descobri por ela que ronco, e não há mais pra onde correr. Agora ela sabe. Decerto escondia de mim, ou ao menos tentava amenizar a brutal verdade. E o que importa? A propósito, o melhor de tudo ainda está aqui: o propósito - amor - tão fundamental quanto sexo.

Ouça em alto e bom som: O Rappa - Linha Vermelha

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